domingo, 27 de dezembro de 2009

FOSÉ LINS DO REGO E OS MISSIONÁRIOS FRANCISCANOS

FREI MARTINHO NAS OBRAS DE JOSÉ LINS DO REGO

No livro inédito de Frei José Milton de Azevedo Coelho "FEI CASIMIRO BROCHTRUP, O APÓSTOLO DOS MOCAMBOS - DA MEMÓRIA À PROFECIA", há um capítulo em que o autor focaliza a presença do missionário francisano Frei Martinho Jansweit, OFM, em algumas obras do romancista José Lins do Rego.
A partir de uma conferência de Frei Martinho por ocasião do Encontro dos Padres Comissários da Ordem Terceira Franciscana, em 1928, Frei José Milton nos leva ao pensamento do romancista José Lins do Rego sobre as Santas Missões, especialmente sobre o Apóstolo da Paraíba, o santo missionário alemão (de alma brasileira) Frei Martinho Jansweit.
Naquele encontro dos Comissários da Ordem Terceira Franciscana dizia Frei Martinho:
“Não há nada mais próprio para garantir o sucesso das Missões do que a Ordem Terceira. É sabido que as Missões, sendo dias de entusiasmo e de graças, abrasam, entre o nosso povo, o fogo de um novo fervor, embora, geralmente, não continue por muito tempo, e, extinguindo-se pouco a pouco, surta diminutos resultados permanentes. Sigamos os exemplos dos antigos conquistadores. Tomado um país ou uma fortaleza, em breve a marcha vitoriosa continuava. O conquistador, porém, bem sabia que, para garantir os primeiros sucessos, era preciso avassalar o espírito do povo submetido. Eis as guarnições, a assegurarem as novas possessões. O mesmo caminho se abre ao Missionário. Reconquistada uma paróquia para Cristo, coloquemos nela a guarnição da Ordem Terceira. O que se pode alcançar com o povo brasileiro, atesta o exemplo do grande Apóstolo da Paraíba, Padre Ibiapina. Acaso, poderemos desejar, para nós, um espírito mais apostólico na fundação de fraternidades terciárias?” (Destaque nosso).
E como calhou, lindamente, a referência de Fr. Martinho ao maior Missionário do Nordeste, o Padre José Antônio Maria Ibiapina, cujo processo de canonização, em nossos dias, se acha em pleno andamento! Nenhum Missionário, entre nós, realizou até hoje, um apostolado tão marcado, conscientemente, por obras como as do Padre Ibiapina, visando aos frutos concretos das Santas Missões: Casas de Caridade (com suas “Beatas”, prédio próprio, patrimônio, hospitais, açudes, cemitérios...) a não ser, o Missionário Apostólico Pe. Francisco José Correia de Albuquerque, precursor e do Padre Ibiapina, falecido em Bezerros / PE, em 1847 ou 1848, e de quem Ibiapina foi continuador, na mesma linha missionária apostólico-social.
Permitam-me trazer à baila algumas reflexões a partir do que o escritor José Lins do Rego nos deixou em páginas sobre as Santas Missões. Primeiro, da obra Meus Verdes Anos. Se nos socorremos desse livro autobiográfico, ficamos sabendo da impressão negativa que as Santas Missões deixaram na mente da criança:
“Se chegavam frades para as santas missões, o povo corria para o regaço de Deus. Os franciscanos, ou os padres da Penha [os Capuchinhos], apareciam nas cidades do interior e arrebatavam dos vigários as rédeas do governo espiritual. As missões aterravam o povo que se agregava para ouvir os pregadores, como se corresse para uma briga. O Deus dos frades gritava, enfurecia-se, maltratava os matutos que tremiam de medo.” [1]
Mas não era só. O menino José Lins ouvia, em casa, freqüentes críticas aos padres. O avô e a família não praticava a religião. As tias não tinham feito nem a Primeira Comunhão.
“O meu avô não tomava conhecimento dos mexericos. Nunca a tia Maria entrou num confessionário. Nada de conversas com padre. (...) Para mim, aquelas irreverências a padres me fizeram desacreditar em muita coisa. O padre Severino concorreu em muito para secar-me a alma de fé (com sua vida escandalosa). Só mais tarde me chegaram os momentos de crença.[2]
Certamente o menino ainda não tinha ouvido falar de Frei Martinho. Nada transparece em Meus Verdes Anos da ação daquele Missionário que palmilhou todos os recantos da Paraíba, pregando Missões populares, substituindo vigários, acompanhando os Bispos nas Visitas Pastorais, construindo igrejas.
Agora, a experiência do adolescente “Doidinho”, o mesmo Carlinhos, neto de José Paulino (ambos personagens de “Menino de Engenho”. No romance Doidinho, o menino é quem fala:
Estava pregando na igreja um frade franciscano. O padre Fileto viera pedir ao diretor para levar o colégio às práticas. Eu ouvia falar nos frades que faziam missões. As negras dos engenhos caminhavam léguas atrás dos missionários, e vinham contando horrores dos capuchinhos de barbas grandes. Davam nas mulheres com os cordões dos hábitos e as palavras desses homens soavam aos ouvidos delas como vozes de santos. Por isso, quando ouvia falar das missões me vinham logo à cabeça as latadas de palha, os frades de pé no chão, os pecadores apanhando de corda, os amancebados que se casavam na hora. E naquela noite ia eu ver pela primeira vez um frade em carne e osso, um daquele brabos servidores de Deus.
A igreja já estava cheia quando lá chegamos. Um púlpito armado no meio do templo esperava o pregador. E ele chegou, alto, louro, com um hábito escuro, de alpercata nos pés. Ajoelhou-se, e a igreja ajoelhou-se com ele. Fez o pelo-sinal com os braços longos e a voz compassada. Começou a falar. Falava manso, uma palavra doce, sem gritos e sem gestos. Ouvi o dr. Bidu dizendo para o seu Maciel: - E mais um conferencista do que um pregador. Fosse o que fosse, o certo é que o que ele dizia eu tomava para mim.
Ele se voltava para os setenta meninos do colégio: - "Uma vez Jesus ia pelo caminho, e um bando de meninos alegres procurou o Mestre para falar com ele. Os Apóstolos botaram para trás as crianças, com palavras ásperas. E Jesus lhes disse: Deixai os meninos, deixai que eles venham a mim, porque deles é o reino dos céus.” E depois deitou a mão pelas cabeças dos inocentes, e se foi dali.
O frade botava os olhos azuis para nós todos, e só falava para o colégio. Jesus amava os meninos porque eles eram a virgindade da vida. Eram a inocência, a alegria feliz, a alma limpa de culpa e de pecados. Mas nem todos os meninos eram assim. Havia os de coração imundo, crescidos no vício como adultos, meninos que empestavam os outros, que fediam à distância. Era doloroso que se ofendesse a Deus justamente com as flores que devíamos deitar a seus pés em oferenda. Sim, havia rosas sujas de lama, rosas imundas, emporcalhadas pelo mundo. Mas quem deixa os porcos invadirem o jardim do Senhor? Os pais, as mães, os educadores. E repetia as palavras do Evangelho, aquelas que se referem aos que escandalizam os pequeninos. Melhor seria, dizia o Senhor, que lhes amarrassem uma pedra no pescoço e os deitassem ao rio. “Procurem os colégios, entrem nos lares de hoje, e é Deus quem falta em tudo, ou é Deus que é ali mesmo esbofeteado sacrilegamente.”
E a prédica continua a se referir à educação dos nossos dias, à impiedade das escolas públicas e dos colégios particulares.
Quem não gostou de nada foi o Diretor do internato, o sádico professor Maciel, torturador profissional de crianças. Já no princípio da pregação de Frei Martinho, Doidinho ouvira o que o Dr. Bidu cochichara para ele. No outro dia, na hora do café, Doidinho prestou atenção à conversa do Diretor com D. Emília:
- A prédica de ontem foi para mim. Eu conheço muito bem o Fileto. Botou na cabeça de frei Martinho aquelas indiretas para o meu colégio.
Não me botaram aqui meninos para aprender a rezar.
E a mulher confirmando:
- Eu é que não vivo em igreja, feito barata tonta de sacristia.
Na hora da aula foi logo chamando o sobrinho do padre. Ia com sede nele. (...) O sobrinho do padre ficou chorando.
– Era o que me faltava. Não sabe a lição e ainda me vem com choro. Passe-se para cá.
E o bolo aliviou a raiva da véspera, da prédica do frade. (...) E o bolo cantava na sala.” [3]
Frei Martinho se ordenou sacerdote em 1900 e faleceu em João Pessoa a 29-7-1930. Os primeiros romances do ciclo da cana de açúcar de José Lins do Rego têm como alvo a Zona da Mata paraibana do final do século XIX e princípio do século XX, berço do romancista. Fr. Martinho já atuava então como jovem sacerdote naquelas regiões. No romance Doidinho, Frei Martinho surge como um Missionário cheio de compaixão e acolhimento, defende as crianças, denuncia os maus tratos e os escândalos de que são vítimas na família e nas escolas, ameaça com as penas eternas os que escandalizam os pequeninos do Evangelho.
Por fim, vamos a um capítulo do romance Cangaceiros.
Em poucas páginas, cheias de poesia e emoção, José Lins do Rego evoca, a seu modo, o Missionário Frei Martinho, quando põe na boca do cantador Dioclécio, a solução para o amor de Bentinho e Alice:
“ - Agora é marcar o casório. Tem missões em São José [do Egito], do Frei Martinho. Dona Severina, porém, cortou a palavra: - Tem missão, é verdade, mas esta moça vai se casar é com banho. Vim aqui pra dizer isto, a menina não tem pai e não tem mãe; nós vamos fazer as vezes dos entes que estão faltando. A gente é pobre mas tem condições para tanto. [...]
- Rapaz, para que tanto alvoroço? Tudo está feito como deve ser. A gente vai amanhecer bem longe daqui e com mais uma pisada estamos em Floresta. As missões vai de manhã à noite. O casamento feito, tu toma destino melhor. É. Eu fico contigo. Vou te deixar no roteiro certo. [...]
Casariam em Floresta, nas missões do Frei Martinho e de lá mesmo ganhariam para longe. [...] E saíram pela mataria rasteira. A noite cobria-os de proteção. O céu estrelado, pinicando. Aí Dioclécio, baixinho, foi dizendo: - Tu tens que ir lá para baixo para trazer a moça, conforme o combinado. A gente toma a direção de Floresta e vai caminhar o resto da noite toda.
- Seu Dioclécio, estou com o dinheiro amarrado no cós da calça.
- Tu vai te casar e depois a gente encontra um jeito. O diabo é a moça fraquejar. [...] Bento falou calmo:
- Seu Dioclécio, foi Deus quem mandou o senhor para a nossa vida.
- Qual nada, menino. Temos ainda que andar o resto da noite. O frei Martinho casa os romeiros na missa da madrugada. [...]
Bento e Alice, conduzidos pelo cantador, fugiam da terra dura e assassina. [...]
- Está vendo? Vamos de rota batida. Se não, vem chegando a força e pega a gente. Isto é o sertão, rapaz. Chegando em Floresta, tenho que cortar este cabelo. Estou que nem um penitente. Vamos embora! [4]
Só que o Missionário por excelência de Floresta, era Frei Casimiro Brochtrup, confrade e contemporâneo de Frei Mrtinho. Liberdades de romancista, ainda mais paraibano, do torrão marcado pelos suores apostóloicos de Frei Martinho Jansweid... E sob “o impulso de forças que ele (o romancista) não pode controlar”...[5]
Nos romances, a figura dos padres é tratada com muito respeito, diria mesmo, com carinho, por José Lins do Rego. Que pessoa, por exemplo, a do Padre Amâncio, em Pedra Bonita! E em Doidinho, como o escritor transfere para o menino a imagem que ele mesmo faz do Missionário ideal!
José Lins do Rego, perpetuou na Literatura a memória do Apóstolo da Paraíba, cujo túmulo é venerado no Convento de Nossa Senhora do Rosário, em Jaguaribe, João Pessoa. Naquelas páginas finais do romance do cangaço, como repisa (é de seu estilo) sobre as missões de Frei Martinho! E no romance “Doidinho”, toma o Apóstolo da Paraíba como arquétipo do Missionário Popular, numa síntese artística que ultrapassa as fronteiras do Nordeste e mesmo do Brasil. É o universalismo da Arte e da Fé. No fundo, o Arquétipo por excelência: Jesus Cristo. Logo depois, o santo sem fronteiras: Francisco de Assis, no seu amor ao Cristo cósmico do Cântico das Criaturas, no abraço do leproso, no cuidado com o Irmão Lobo...[6] É possível que também à influência do Missionário Frei Martinho se possam atribuir “aqueles momentos de crença” do homem José Lins do Rego a que o autor se refere em Meus Verdes Anos.



[1] REGO, José Lins do -, Meus Verdes Anos, José Olympio Editora, Rio de Janeiro, ano 2000, 6.ª edição. Cf. pp. 192, 193.
[2] Id. Ibd. p. 192.
[3] REGO, José Lins do -, Doidinho, José Olympio Editora, 38.ª edição, Rio de Janeiro, ano 2000, pp. 68 a 71.
[4] REGO, José Lins do -, CANGACEIROS, José Olympio Editora, 10 edição, Rio de Janeiro, RJ, 1999), pp.238 – 240. Cf. também in COELHO, Nely Novaes -, na sobrecapa da 10ª ed. de CANGACEIROS, sobre o estilo de J. Lins do Rego.
[5] COELHO, Nely Novaes -, ibd.
[6] Vide, aqui, o que José Lins do Rego falou sobre o Irmão Lobo aos alunos seráficos de Ipuarana (Lagoa Seca / PB), quando da inauguração do seu busto no Pilar, sua terra Natal: Livro III, Cap. V, 12.
Na década de 1950, José Lins do Rego visitou o nosso Colégio Seráfico de Santo Antônio em Ipuarana (Lagoa Seca /PB), acompanhado da esposa e vários intelectuais de Campina Grande e João Pessoa, ocasião em que fora inaugurar um monuento em sua honra em Pilar I(PB). O nosso seminário lhe prestou uma homenagem muito simples, dado o imprevisto da visita. Nosso coral entoou para os visitantes vários canções da autoria de frei Adriano Hipolito, futuro bispo de Nova Iguaçu. José Lins do Rego agradeceu com palavras cheias de gratidão e que refletiam a grande simpatia pela presença franciscana ali no alto da Borborema. Disse da alegria de ter diante de si os rostos de tantos jovens de todos os rincões do Nordeste. E nos incentivou a perseverar na vocação franciscana certos de que "o irmão lobo" estava à nossa espera!" Foram palavras que até hoje ecoaram no meu coração. Mas não é por causa disso que o considero o maior romancista brasileiro dos tempos modernos. O mais nordestino, sem dúvida nenhuma!

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